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O Jardim do Éden


Martyn Stubbs

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O Jardim do Éden

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Para quem tinha dúvidas sobre a natureza do Éden segundo os gnósticos, o essencial está aqui. O Éden é o jardim de Yaltaboat, de Samael, do arconte cego e violento, que não sabe que o espírito que insuflara no Homem era da mesma natureza que o do Espírito invisível, cônjuge de Sabedoria, e da própria Sabedoria.

A tensão entre o Adão e Yaltaboat é evidente mesmo numa exegese ortodoxa. Colocado no Éden, a Adão é proibido tocar na árvore mais valiosa, a do conhecimento do bem e do mal. Yaltaboat (ou sete arcontes, noutras descrições) lança, então, sob Adão, um letargo, uma ignorância, de onde retira Eva, que, nas palavras da Hipóstase dos Arcontes, exclama para o Adão de onde proveio: “‘Levanta-te Adão’. E quando a viu, ele disse: ‘Tu és a que me destes vida; serás chamada mãe dos viventes’. (Querendo significar:) ‘Ela é a minha mãe, ela é a parteira, a mãe e a parideira’” (BNH, I: 351).

A partir daqui a exegese gnóstica do Éden inverte aquela que é a exegese ortodoxa, da Tora e do Cristianismo.

Eva não é má da fita. Pelo contrário, é boa da fita, seja esta a mulher terrenal ou a espiritual que entra no instrutor, a serpente, para salvar Adão do Jardim do Arconte. Veja-se, mais uma vez, a Hipóstase dos Arcontes:

“A espiritual penetrou na serpente, o instrutor. Então, a serpente instruiu a mulher, dizendo: ‘O que é que ele vos disse? Será que de toda a árvore que está no paraíso comerás, mas da árvore do conhecimento do mal e do bem não comerás?’ Respondeu a mulher carnal: ‘Não disse somente ‘não comer’, mas também: ‘Não lhe toques, porque no dia em que comerdes dela morrereis de morte’’. E disse a serpente, o instrutor: ‘Não morrereis de morte; disse-vos isso porque é invejoso. Mas abrir-se-ão, antes, os vossos olhos e sereis parecidos com deuses, conhecedores do mal e do bem’. E a instrutora retirou-se da serpente e abandonou-a como coisa já puramente terrestre. Então, a mulher carnal colheu da árvore e comeu, e ofereceu ao seu marido juntamente com ela.

Os arcontes voltaram-se para o seu Adão, agarram-no e expulsaram-no do paraíso com a sua mulher, porque os arcontes não têm qualquer bênção, uma vez que eles próprios estão sob a maldição.

Então, os arcontes lançaram a humanidade no meio de grandes perplexidades e dos castigos da vida, a fim de que os seus homens andassem atarefados e não tivesse tempo adequado para aderirem ao Espírito Santo” (BNH, I: 351-352).

Aquilo que ocorre nesta inversão cósmica (do ponto de vista do arconte) do bem e do mal e, mais radicalmente, da ontologia do mundo e do destino da salvação, i.e., da sotereologia, decorre da visão segundo a qual o homem espiritual, o pneumático, é de natureza ontologicamente diferente do homem terrenal, o hílico, ainda que submerso no mundo cósmico material, mecânica, moral e socialmente determinado. Pelo contrário deste mundo, a essência do pneumático é a de um Ser de Luz acidentalmente votado às agruras do cosmos terrenal. Por isso, aquilo que no senso comum judaico-cristão constitui o mal absoluto, a Serpente desafiadora da transcendência divina, corresponde, para os gnósticos, ao instrumento de salvação, de gnose, ao Espírito Santo, que revela e instiga Adão e Eva ao rompimento com as determinações do Éden e de Samael, como via para a autêntica libertação cosmológica até, no limite, à sua reintegração pleromática.

Para os gnósticos o Éden não constitui mais que uma prisão, Yaltaboat um déspota ignorante e invejoso e a Serpente a libertadora, ou instrutora, gnóstica. A desobediência de Adão e Eva ao criador não constitui mais que a assumpção, com a ajuda da Instrutora, da natureza pneumática do homem, que se recusa às leis deste mundo, sejam elas morais ou materiais, já que essas leis são as leis de Yaltaboat mas não as leis de Deus, do pré-Pai incognoscível. É que enquanto as leis de Yaltaboat são as leis da determinação física e social, da regulação e constrangimento humanos, já as leis de Deus, pelo contrário, são aquelas que abrem o caminho à completa libertação, à reintegração de si mesmo num sistema de diferenças e semelhanças que não autoriza uma vulgar consciência de si e do mundo, mas antes uma visão não convencional, que exige um afastamento integral do mundo e dos outros até dentro de si mesmo, até ao auto-conhecimento, como via propedêutica, mas absolutamente necessária, para a compreensão de que o si mesmo, o eu, não passa de uma ficção tangível, de um sistema de diferenças, de um Nada que opera como se fosse alguma coisa e que, porque é Nada e alguma coisa simultaneamente, é também Tudo e Nada, tal como o pré-Pai.

A ideia fundamental em presença na exegese gnóstica do éden é que o Homem de Luz, o pneumático, não é deste mundo, ou desta qualidade mundana, e que, por isso, faz sentido a luta contra Yaltaboat, uma luta de libertação, para o que conta com a ajuda de outros éons que se compadecem do erro inicial de Sabedoria, i.e., a própria criação de Yaltaboat.

O gnóstico assume, então, por esta via, um radical antinomismo, no sentido da rejeição das leis deste mundo, das leis de Yaltaboat, sejam elas as leis morais ou materiais. Neste sentido, não se vê obrigado pelo decálogo porque não é deste mundo; nem sequer pela lei da morte, porque, na verdade, não pode morrer, já que a morte, no sentido convencional, não constitui mais que a radical rendição deste corpo às determinações cosmológicas de Samael.

O pneumático, aquele que se sabe, se sente tocado e determinado pela sua natureza pneumática, não responde, então, por aquilo que é fruto do seu corpo, seja isso o seu desejo, a sua fúria ou o seu medo, já que tudo isso lhe é externo e contingente, já que aquilo que lhe é próprio, pelo contrário, é refractário a toda a mundanidade, até ao ponto em que já não reconhecerá o desejo, o corpo a fúria ou o medo como seus, abandonando-os ou, até, abandonando-se a eles.

Nada há, então, neste mundo, que possa tocar o gnóstico. Do mesmo modo que o espírito não pode ser fechado numa caixa, também o corpo, e aquilo que neste mundo é dessa natureza, não pode tocar o pneuma, mesmo que, ocasionalmente, um corpo e uma moral, ou a falta dela, se possam desgastar em mundanidades.

Neste sentido, o gnóstico sente-se estrangeiro neste mundo e percebe a sua relação com o mundo como algo de essencialmente trágico. A tragicidade é a tragicidade própria do absurdo que conforma o mundo, do mundo como sistema de distinções irreconciliáveis, mesmo ante as mais óbvias e absolutas necessidades. Um absurdo que, porém, não tem que ser configurado de modo desesperado mas, antes pelo contrário, que pode e deve ser visto como oportunidade de reintegração do si mesmo, de via de conhecimento de si mesmo até um nível de uma virtual nadificação de si, que também não corresponde a uma nadificação ontológica, já que quer a reificação quer a nadificação são relativas, isto é, complementares.

Esta exigência salvífica só aparentemente é uma contradição. O auto-conhecimento é a via do conhecimento enquanto desconhecimento de si. Só poderemos aspirar a certo nível de conhecimento no momento em que reconhecermos que, cosmologicamente, como se refere no “Evangelho de Felipe”, “nem os bons são bons nem os maus são maus, nem a vida é a vida, nem a morte é a morte. Por isso, cada um se dissolverá na origem que tem desde o começo; mas os que são superiores ao mundo são indissolúveis, são eternos” (BNH, II: 29).

Percebe-se que assim seja. A natureza do pneuma gnóstico é imune às distinções terrenais, aos dualismos morais tradicionais, já que eles configuram certo modo de ser que é incapaz de reconhecer a unidade infundada de onde tudo provém. Na verdade, os dualismos, as distinções, são tão-somente virtuais, ilusões que não têm acesso (como se dotadas de um ponto cego essencial) à integral proximidade e subsunção de todas as coisas. Para além de tudo, a moral convencional não é mais que o resultado das distinções cegas operadas pelo demiurgo, que visam aprisionar cada ser nos limites deste mundo, impedindo-o de se aproximar a si mesmo e, assim, de se emancipar verdadeiramente das ilusões terrenais.

O niilismo moral dos gnósticos decorre, então, de uma antropologia e de uma ontologia. Apercebendo-se como exilados, primeiro no Éden e, depois, na vida terrenal, para onde são expulsos, os gnósticos não reconhecem às acções humanas qualquer tipo de valor, salvando-se unicamente pela sua natureza. Na verdade, quanto mais assumem e se aproximam da sua natureza mais indiferentes são às leis sociais e morais. Este mundo é criação de um deus demencial e cego, auto-proclamado como onipotente e onisciente mas, na verdade, desconhecedor da origem e da natureza de si mesmo e do mundo que cria.

Assim, o gnóstico não está, simplesmente, comprometido com este mundo e não vê nele nada que lhe possa aproveitar e muito menos ainda o conjunto das leis morais, que não pretendem senão configurar o si mesmo humano à imagem da vontade de dominação de Yaltaboat-Saclas-Samael, um si mesmo desconhecedor, alienado, e afastado de si mesmo, edificado segundo uma metafísica essencialista e reificada, com os constrangimentos temporais e espaciais que a plena mundanidade sempre acarreta.

O gnóstico, para se edificar tem, então, que recuar para si mesmo e afastar-se integralmente do mundo e dos outros, num movimento de edificação puramente negativa, à semelhança, aliás do pré-Pai, que é ele mesmo mais nada, ou nihil, que alguma coisa, mais uma negatividade que uma positividade que se possa ver, sendo que é nessa negatividade que se pode ser alguma coisa.

Francisco Teixeira

http://www.triplov.com/coloquio_06/Fran ... ponto4.htm

Fonte: http://pistasdocaminho.blogspot.com/200 ... o-den.html

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